O Mal Que Nos Habita é uma reinvenção perturbadora do terror de possessão
Filme do diretor argentino Demián Rugna é um forte candidato ao mais assustador do ano
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Quando alguém pensa em alguém possuído por um demônio, particularmente dentro do contexto cinematográfico, algumas características tipicamente vêm à mente. Pele pálida, olhos amarelados, voz distorcida, roupas sujas. Basicamente qualquer coisa eternizada por O Exorcista há 50 anos. Então, quando O Mal Que Nos Habita (When Evil Lurks) finalmente te mostra um dos apodrecidos, como pessoas nessa condição são chamadas no seu mundo, há um grau de surpresa considerável.
A cena parece vir mais da sequência sobre gula em Seven: Os Sete Crimes Capitais do que de algo comum neste gênero, só que pior. O corpo inchado espreme pus e líquidos pela própria pele, repleta de feridas sangrentas, e quando a voz enfim se manifesta, ela é uma fonte de insultos e perversões, que pede pela própria morte não para pôr um fim do seu sofrimento corporal, e sim para expandir a agonia espiritual ali dentro. Esse homem, descobrimos, está nos estágios finais de uma possessão, e matá-lo sem o ritual correto não só falhará em extinguir o mal, como irá espalhá-lo pela região. O efeito será pior se pólvora for usado.
Esse é apenas um dos elementos da mitologia fascinante construída pelo diretor argentino Demián Rugna para um dos mais perturbadores filmes de terror do ano. O Mal Que Nos Habita tem levantado muitas comparações a outro terror internacional adquirido e distribuído pela plataforma: Speak no Evil, do ano passado. Os paralelos temáticos são poucos, e de estilo ainda mais raros, mas é fácil entender de onde partem essas associações. Em ambos casos, há a construção de uma atmosfera densa, onde não há esperança de escapar nem mesmo para crianças.
O tal apodrecido é descoberto pelos irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jaime (Demián Salomón) após uma arrepiante sequência de abertura culminando na descoberta de um corpo mutilado. O que sobrou do cadáver revela duas coisas. A primeira, é que ele era um "limpador" — alguém capacitado a matar (não exorcizar, isso parece não ser uma opção) o possuído e expulsar o mal daquele lugar — e a segunda é uma trilha de sangue que leva até a casa onde aquele corpo infestado se encontra. A polícia local não quer fazer nada, e diz que chamará os serviços públicos responsáveis por isso, mas como o grande fazendeiro Ruiz (Luis Ziembrowski) explica: para o governo, a morte de todos ali significará a chance de tomar aquelas terras.
Os três decidem levá-lo para longe, e tudo passa a dar errado a partir daí. Rugna constrói um mundo fascinante cujo funcionamento de possessão permite não só a encenação de uma sequência assustadora depois da outra, quanto sugere um universo muito maior de acontecimentos horríveis existindo nas beiradas da história. Muito fica implícito, mas há a impressão de que estamos na Terra pós-arrebatamento (não há igrejas, um personagem grita), e a presença de espíritos malignos funciona quase de forma viral. Eles infectam pessoas, animais, natureza e, de forma geral, poluem todo o ambiente, trazendo caos e morte. Isso tudo antes de chegarem ao estado final, quando o demônio nasce, em forma física, de dentro do seu hospedeiro.
Rugna nos guia por tempo o suficiente para compreendermos a história, mas está mais interessados em mostrar o tremendo peso emocional de viver nessas circunstâncias do que na explicação de como tudo funciona nos mínimos detalhes. Não precisamos entender exatamente o que acontece quando se mata o demônio da forma erada quando temos o impacto visceral de uma esposa tomando medidas drásticas depois que seu marido comete esse equívoco. O desespero é palpável.
Ao mesmo tempo, como filme que depende muito de suas regras, O Mal Que Nos Habita eventualmente se mostra indisposto ou incapaz de operar dentro delas, e algumas cenas pesadas em exposição tornam tais escapatórias confusas. Surpreender ou subverter as próprias normas pode elevar filmes, mas a direção de Rugna não consegue fugir de seu próprio roteiro. É difícil criticá-lo por dobrar a realidade para obter mais sustos e horror, mas há uma frustração inevitável quando o cineasta que antes mostrou tanto cuidado com a pintura de seu mundo depois se mostra pouco interessado no mesmo.
O playground, porém, segue assustadoramente criativo. É tentador olhar para a apresentação da possessão como algo que gera contágio e interpretar O Mal Que Nos Habita como uma metáfora do COVID. Rugna, felizmente, parece mais interessado em uma ideia mais ampla e maléfica, que passa também pela ideia perversa de que crianças são mais vulneráveis ao mal, seja ele a violência contra qual os pequenos não têm defesa, uma doença para a qual eles não possuem anticorpos, ou um espírito cuja tentação eles não conseguem resistir. Filhos normalmente são os responsáveis, diretos ou indiretos, pelo sofrimento de seus pais.
Para trazer essas propostas à vida, O Mal Que Nos Habita faz uso criativo e eficaz dos efeitos práticos mais nojentos possíveis. Eles ajudam a perpetuar a dor das brutalidades aqui apresentadas, que se tornam ainda mais poderosas por que Lugna não tenta glorificar ou enfeitar as mortes. Pelo contrário, ele as apresenta com indiferença; um afastamento estético que permite a aproximação emocional. Rugna quer nos deixar como aqueles personagens. Indefesos diante do mal.
Crítica publicada originalmente em 26 de outubro de 2023. O Mal Que Nos Habita estreia nos cinemas brasileiros em 1º fevereiro.